Quem são e o que querem os jovens de hoje? Entrevista com o pesquisador José Machado Pais.
Em maio deste ano o professor e pesquisador José Machado Pais, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, participou como professor visitante (Edital CNPq/APV) de atividades do Programa de Pós-Graduação em Educação, entre elas uma palestra pública sobre um dos seus principais temas de investigação: Jovens e transições de vida. O interesse do público presente e dos professores e estudantes do Mestrado e Doutorado em Educação e dos cursos de licenciaturas nos motivou a continuar a conversa, desta vez através de uma entrevista, que o pesquisador concedeu à equipe do Site da UCS. Ela foi editada sem cortes, fiel à fala e ao pensamento do renomado professor. [ Leia também sobre a visita de José Machado Pais à UCS.]

Aos 20 anos, vivendo em Lisboa, num Portugal pré-revolucionário, quais eram os seus sonhos de futuro?
Meus sonhos de futuro apareciam grafitados nas paredes de Lisboa: abaixo a ditadura, fim à guerra colonial, nem mais um soldado para África... Muitos jovens portugueses opunham-se à guerra colonial. Uns exilavam-se ou desertavam. Outros, universitários como eu, pediam adiamento da incorporação militar para terminarem a graduação, esperando que a guerra terminasse. Agarrei-me a essa esperança. A guerra terminou com a revolução dos cravos. Logo depois fui chamado para a Força Aérea, onde cumpri serviço militar obrigatório durante dois anos, dando aulas de Economia e Sociologia no curso de formação de oficiais. No quartel o lema era cuidar da metralhadora como se uma amante fosse. Mas minha paixão continuava centrada nos livros.
O que existe em comum entre o jovem que você foi e o jovem dos nossos dias? Em quarenta anos, o que mudou e o que permanece, quando se pensa em aspirações juvenis?
Persistências? Uma semelhante busca de singularidades subjetivamente assumidas e socialmente exibidas. Nos anos 60 eram os cabelos esgadelhados, as calças à boca de sino, as sociabilidades de café e de esquinas de rua. Hoje são as t-shirts, os ténis de marca, as tatuagens e, sobretudo, as sociabilidades com mediação tecnológica. Em termos de valores societais podemos falar de algumas descontinuidades. A chamada geração dos anos 60, especialmente em meios universitários, estava muito apegada a ideais libertários, contra-culturais e pacifistas. Hoje os jovens tendem a privilegiar uma cultura subjetiva, ancorada às chamadas políticas de vida como as designa Giddens. Eles reclamam uma cidadania da intimidade, tal como a define Plummer. Daí a adesão aos chamados lifestyles movements. A relação com o tempo também mudou. Entre os jovens de hoje dá-se uma crescente espacialização da experiência, como se esta se despisse das suas vestes temporais. Daí se poder falar de uma relativa atemporalização da experiência, de um eclipse da linearidade temporal, da emergência de um tempo fragmentado, descontínuo, caótico, disperso, fugidio.
Parte de seus estudos, nos últimos 30 anos, é sobre culturas juvenis e têm como foco a realidade de diferentes países (Europa, África e América Latina). A partir deles pode-se dizer que, independentemente do país, o jovem contemporâneo tem aspirações comuns?
Um traço comum aos jovens de diferentes latitudes geográficas e sociais é o da conquista do presente. Aspiração que aliás ecoa num dos trechos do último CD (Vem), da cantora brasileira Mallu Magalhães: “não sou do passado nem do futuro eu só gosto do agora”… Fernando Pessoa, em suas fases de desassossego, também alinhava com semelhante diapasão: “Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já não o tenho”. Quer isto dizer que os jovens não têm aspirações de futuro? De maneira nenhuma. Só que essas aspirações são moldadas pela imprevisibilidade do futuro. O presente abre-se ao futuro, mas a um futuro imprevisível. Veja-se o que se passa nos Estados Unidos de Trump, na Grã-Bretanha de Teresa May, no Brasil de Temer, no Médio Oriente, na União Europeia com o Brexit… Daí o temor ao futuro. O futuro teme-se não apenas pelo que dele se espera, mas sobretudo por não se saber o que dele esperar. Teme-se o futuro pela sua imprevisibilidade. É esse tempo de incertezas que leva os jovens a ampliar o espaço da experiência, o do cotidiano. Umas vezes como refúgio às ameaças do futuro, outras vezes como um espaço de concretização de desejos e aspirações. Neste caso, o imprevisto é mais atrativo do que o previsto ou o entrevisto. Não faz sentido controlar o horizonte de espera em relação a aspirações que podem caducar com a passagem do tempo. A espera desespera. Entre os jovens de hoje, o futuro já não se planeia a longo prazo. As aspirações e decisões adoptam-se e adaptam-se em função das circunstâncias.
Em que medida, as tecnologias da informação e comunicação aproximam – ou afastam – esses jovens? E que impacto isso tem no seu processo de transição para a vida adulta, em uma sociedade dita “globalizada”?
Hoje, as culturas juvenis desdobram-se em culturas digitais. Os jovens procuram conectar-se. Eles mobilizam-se nas redes sociais, tecem tramas de cumplicidade, envolvem-se em novas redes de comunicação de suporte à participação cívica e política: websites, facebook, blogs, fóruns, protestos online, etc. Os jovens das regiões mais empobrecidas do mundo não estão fora desta onda. Segundo relatórios do Banco Mundial, há em alguns países africanos mais pessoas com acesso a um celular do que a água corrente, conta bancária ou eletricidade.
A África está vivendo um período de crescimento tão acelerado na utilização das novas tecnologias que o relatório do Banco Mundial chama-lhe mesmo “a década móvel”. As tecnologias de informação permitem um conhecimento em rede com efeitos ainda inexplorados nos processos educativos e formativos dos jovens.
Com o que sonha o jovem hoje? A formação universitária, o primeiro emprego – aspirações relevantes para as gerações anteriores – ainda fazem parte do ideário juvenil?
O que mudou significativamente? A consciência de que o diploma por si só não é nenhuma varinha mágica de acesso ao emprego, embora assegure melhores inserções profissionais. Por isso mesmo, a formação universitária continua a ser valorizada como trampolim de mobilidade social, embora o acesso à universidade continue de difícil acesso a muitos jovens. Alguns nem sequer conseguem finalizar o ensino obrigatório, em grande parte por falta de condições económicas.
Em um mundo que parece estar permanentemente em crise, em que 1% da população mais rica detém 51% da riqueza mundial, o jovem parece estar desencantado com a forma como as instituições sociais olham para – e por – ele, surgindo assim uma descrença em relação ao futuro e uma frustração com relação ao presente.
Há desencanto mas há também o encanto que apela à mudança. Tudo acontece nas brechas societais. Num sentido tradicional, o conceito de brecha refere-se a fendas associadas a desarranjos, assimetrias, exclusões sociais. É neste sentido que o conceito é usado pelo Nobel da economia Joseph Stiglitz, num livro cuja tradução para espanhol, La Gran Brecha, ganha um subtítulo desafiador: Qué hacer con las sociedades desiguales. Contudo, noutro sentido essas brechas podem fazer surgir oportunidades de vida. Aliás, a expressão “estar na brecha” remete para a ideia de ser ágil, ter sentido de oportunidade. Daí a reputação dos jovens trendsetters. Eles estão na brecha, assumem-se como caçadores de oportunidades. Alguns vão mais longe, ao criarem condições para que as oportunidades surjam. Uns explorando a riqueza dos interstícios que os leva a alcançar novos horizontes de realização profissional e pessoal. Outros fazendo do improviso uma arte de sobrevivência.

“Há desencanto mas há também o encanto que apela à mudança.”
Podemos dizer que as instituições – a começar pela família e pela escola – encontram dificuldades para compreender esse jovem que carece de portos de abrigo e âncoras de segurança, mas que, ao mesmo tempo, necessita alçar voo para ganhar a vida?
Nem sempre a família e a escola têm valorizado devidamente a ludicidade criativa. Hoje em dia, o ambiente familiar não é muito propício ao convívio. A televisão intrometeu-se abusivamente na teia das relações familiares. Já poucos são os avós que contam histórias aos netos, cada vez mais grudados à televisão e aos jogos de computador. Por outro lado, na escola há quem advogue a ideia de que a aprendizagem requer sacrifícios, uma escolha entre estudo e lazer. Mas que lazer? Se lazer rima com prazer, com que direito eliminamos a possibilidade de haver prazer no aprender?
Especificamente, no que se refere à escola, que movimento está sendo feito nesse sentido?
O sistema educativo é uma unidade de persistências e ritualidades. Como nos ensinou Balandier, em seu livro Le Désordre, Eloge du Mouvement, os ritos reforçam a ordem, sem eles a vida social seria impossível. Mesmo os ritos de passagem são formas airosas de lidar com a ruptura, com as turbulências intersticiais. Há que subverter o princípio de acomodação aos ritmos do deixa andar. Esses ritmos só podem ser abalados por efeito de irrupções criativas. Há que apostar em ritmos escolares abertos à criatividade. Isso é possível com experiências laboratoriais, oficinas de escrita criativa, visitas de estudo que promovam sede de conhecimento. Por isso mesmo nunca se deveria imaginar o ensino distanciado da pesquisa.
A escola é hoje um porto de abrigo ou um espaço de tensão – e muitas vezes de frustração – para o jovem? O que o jovem espera da escola e o que efetivamente ela lhe apresenta?
A escola pode ser para os jovens um espaço de abrigo ou de tensão, mas também de exclusão ou de inovação. Há que questionar se o futuro para o qual se orienta a educação e formação dos jovens é o futuro que verdadeiramente os espera. Quando excessivamente modeladoras, as escolas fomentam subjetividades miméticas, reprodutoras de um saber consabido, ressabido, até mesmo ressabiado. Cumpre à escola saber transmitir conhecimentos, mas o seu principal desafio é o de saber estar aberta à inovação, à produção de novos conhecimentos, implicando os seus alunos nesse desafio.
Quais são os principais desafios que a escola – e os professores – encontram para acolher a um jovem que desconfia do que o futuro lhe reserva? É possível dar conta desses desafios estritamente no âmbito escolar? Ou a rua, e tantos outros espaços sociais, também pode apontar caminhos de mudança?
Os caminhos da mudança passam por contornar algumas inércias que persistem no sistema educativo. Não me refiro ao mudar por mudar, como acontece com sucessivas reformas curriculares, mais dependentes de orientações político-partidárias do que educacionais. Outro traço de persistência institucional é a compartimentação dos saberes, impedindo uma aproximação integradora de distintas formas de conhecimento. Karl Mannheim escreveu uma importante obra, Structures of Thinking, à qual não tem sido dada a importância devida. Nessa obra Mannheim fazia uma distinção entre conhecimento conjuntivo e conhecimento comunicativo. O conhecimento conjuntivo é aquele conhecimento que, embora acumulativo, se encerra sobre si mesmo, num dado domínio de saber. Em contrapartida, o conhecimento comunicativo coloca em diálogo saberes de diferentes domínios culturais ou disciplinares. No cruzamento de distintos domínios do saber surge frequentemente uma tensão criativa. A criatividade passa pela capacidade de conectar o desconectado.
O senhor é uma referência nos estudos que tomam o cotidiano como perspectiva metodológica. Como o senhor define a sociologia da vida cotidiana e de que forma ela nos ajuda a compreender os fenômenos de interconectividade entre a escola e a sociedade?

“Há que apostar em ritmos escolares abertos à criatividade.”
Uma vez, um repentista brasileiro, Françuá do Ceará, deu-me uma curiosa definição do repente. Dizia-me: “O repente é instantâneo / É o que se faz avessado / No meio do povo estranho / Veja o meu detalhado“… Esse fazer detalhado e avessado pode ser tomado como uma estratégia de pesquisa social: quer quando buscamos nos detalhes do cotidiano a revelação do social; quer quando miramos e remiramos achados exóticos do cotidiano, de natureza comportamental, para lhes achar os seus avessos endóticos, de natureza social. Tudo está ligado. Não é possível entender a escola sem olhar o seu avesso, tecido de constrangimentos sociais. Não faz sentido pensar a escola fora dos mundos sociais de que faz parte. Charles Brauner e Hobert Burns, no livro Problems in Education and Philosophy, dão um exemplo para entendermos os elos da escola com a sociedade, narrando a história de um artesão da baía de Baffin, no nordeste do Canadá. O velho esquimó, escultor de pedras, confessava que nunca se guiava por moldes pré-estabelecidos, sempre entrava em diálogo com as pedras, perguntando-lhes em que peça desejavam ser transformadas. Uma vez encomendaram-lhe um urso polar. Dias depois apareceu com uma pedra esculpida de baleia. A justificação não se fez esperar. O experiente escultor perguntara à pedra se desejava ser transformada num urso polar mas a pedra logo manifestou o desejo de vir a ser uma baleia ou uma foca. Aí o velho artesão questionou-se a si próprio que metamorfose assentaria melhor na pedra. E escolheu a baleia.
Moral da história: o dom da escuta deveria imperar na escola. Que desejam os jovens quando a ela chegam? E a sociedade, ela própria, que espera da escola? Mas os mestres, evidentemente, têm uma palavra a dizer.
Em que medida, o cotidiano como alavanca para o conhecimento pode contribuir para a construção de práticas que fortaleçam as relações estabelecidas no interior das instituições educativas e de socialização?
O conhecimento cotidiano é um conhecimento prático, feito de experiências acumuladas. As instituições educativas são, ou deveriam ser, campos de socialização dessas experiências, janelas abertas para os vastos horizontes do que é possível fazer com a riqueza do conhecimento. Qualquer conhecimento deixa de o ser quando se mumifica em sua inércia. Passa a ser peça de museu. É pobre o ensino que se contenta com uma mera divulgação das ferramentas do conhecimento. Isto é um martelo. Isto é um alicate. Isto é um teorema. O ensino de largo alcance é o que permite exercitar criativamente o uso dessas ferramentas. Há que contemplar a criatividade como uma das dimensões mais relevantes das instituições educativas.
O senhor vem acompanhando professores e pesquisadores de diversas universidades brasileiras em estudos e experiências envolvendo culturas juvenis e cultura escolar. Como surgiu seu interesse pelo nosso país e como estão sendo essas interações? Em que medida a cooperação acadêmica entre instituições de diferentes países e continentes pode trazer um novo olhar sobre o jovem e suas relações sociais?
Novos olhares resultam frequentemente do entrecruzamento de olhares. As interpretações mais ricas são as que resultam de hermenêuticas coletivas. Aliás, em minhas pesquisas, um dos métodos que mais recorrentemente uso consiste, simplesmente, em olhar para o lado.
Por exemplo, para realidades que têm uma matriz cultural comum, como acontece no mundo lusófono. Como se reinventam as memórias culturais em processos de transculturação? Assim surgiu o meu interesse pelo Brasil, mediado por um olhar transatlântico. Foi amor à primeira vista. Sou fã da música popular brasileira, vibro com as vitórias da seleção brasileira, sofro com a miséria do país, admiro a literatura brasileira e a criatividade do povo brasileiro, em particular dos seus repentistas. Franklin Maxado, da Bahia, já esteve no meu Instituto dando um seminário sobre cordel e uma oficina de aprendizagem de forró. Seu cordel Portugal nas mãos de Deus, nos pés de Cristiano e pares e nos braços do Zé Povinho foi por mim prefaciado: “Nosso Franklim Machado/ De coração nordestino/ É cordelista afamado/ Chuta palpites com tino/ O samba vai virar fado/ Fadado pelo destino”. E assim foi, o samba virou um triste fado com a nossa miserável participação no mundial de 2014. Mas retomando o cordel da meada, é o olhar para o lado que nos permite a construção de novos olhares. Por exemplo, através de etnografias multi-situadas ao estudar jovens de diferentes latitudes sociais.

” A criatividade passa pela capacidade de conectar o desconectado.”
Em maio, o senhor esteve pela primeira vez no Rio Grande do Sul para participar, entre outras atividades, como professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCS. Como foi essa experiência?
Foi uma experiência riquíssima, desde logo pela forma tão cordial como fui recebido por alunos e professores, incluindo o próprio Reitor. Surpreendeu-me o cuidado ambiental e paisagístico do campus universitário da UCS. Sabemos que os problemas ambientais só podem ser enfrentados com uma consciencialização comunitária dos valores ambientalistas.
Talvez por estar orientada por valores comunitários, a UCS se sinta impelida a valorizar essa dimensão ambiental, bem visível nos arranjos paisagísticos do campus universitário. Para além das atividades académicas – palestras, bancas, um minicurso e reunião com grupos de pesquisa – tive também oportunidade de fazer uma aproximação etnográfica ao cotidiano das culturas locais, acompanhando a atividade de alguns Centros de Tradição Gaúcha. Participei num café campeiro em Criúva e assisti a um ensaio no CTG de São Marcos, onde também visitei o Museu, tendo por guia o professor Luís Antonio Rizzon. Não esqueço ainda a louvação do Divino Espírito Santo em São Marcos e as riquíssimas entrevistas com Manoelito Savaris, na UCS; Jorge Rodrigues, em Criúva; e Renato Borghetti em sua fábrica de gaiteiros, na Lagoa do Guaíba. Estou em dívida para com todos eles, incluindo os professores e alunos que me acompanharam nestas incursões etnográficas, destacando a professora Nilda Stecanela e também Cineri, Terciane, Victor Nedel e Alexandre Vieira. Um dia escreverei sobre estas minhas incursões por terras do Rio Grande do Sul.
Do que um programa de pós-graduação em Educação não pode prescindir para, efetivamente, preparar professores para atuar com a juventude? Na sua concepção, o que significa ser um bom professor?
Há que valorizar a subjetividade dos jovens em toda a sua complexidade. O desejo de conhecimento não é independente dos sentimentos, emoções e afeições que, subjetivamente, fazem vibrar os desejos. É essa vibração que anima os sujeitos atuantes. Há que mobilizar a comunidade escolar para novos modos de pensar e atuar de forma reflexiva. A reflexividade medeia a relação dos jovens com o mundo. Um bom professor não se limita a transmitir o saber numa lógica de franchising. Um bom professor cria estímulos para que possamos transformar o que sabemos.
Fotos: Claudia Velho
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