XXI Fórum Paulo Freire – Educar para Libertar.
Trinta e cinco anos após vinda de Paulo Freire a Caxias do Sul, UCS recebe evento sobre a obra do educador, autor brasileiro mais pesquisado do mundo, com metodologia aplicada em universidades e escolas dos EUA, Europa e África, entre outros.
Publicado originalmente na edição 29 da revistaUCS

“Alguns de vocês podem dizer: ‘Paulo, esse negócio é muito sonhador’, e eu simplesmente diria a vocês que eu acho que ninguém transforma o mundo se não sonhar um pouco. Eu vivo sonhando. Agora, a questão é saber se o sonho da gente é possível, e quando não é, a gente tem que fazê-lo possível”. Em 30 de maio de 1984, mais de 3 mil pessoas reuniram-se no antigo Ginásio Pedro Carneiro Pereira, para acompanhar a palestra de um ciclo de estudos sobre a educação promovido pela Secretaria Municipal de Educação, Universidade de Caxias do Sul, escolas particulares e pastorais sociais.
No centro da mesa, o educador Paulo Freire, projetado internacionalmente após 16 anos de atuação pelo mundo, em sua primeira (que seria também a única) visita a Caxias do Sul. Em sua segunda explanação do dia (da qual foi extraído o trecho que abre esse texto), ele discorria sobre o sonho de conjugar dois temas que, ao conferir título à palestra, ao mesmo tempo sintetizavam sua visão de pedagogia e ainda hoje, 22 anos após sua morte, são os alicerces primordiais de sua abordagem: Educação e Liberdade. “Para se ter educação com liberdade e liberdade com educação, há necessidade dos dois conceitos caminhando juntos (pois também pode haver uma educação que oprima as pessoas). Na prática da liberdade se faz educação para a liberdade”, define a professora Marisa Formolo Dalla Vecchia, à época uma das organizadoras do evento, representando a UCS.
Agora, 35 anos depois, a UCS recebe o XXI Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire – cuja abertura ocorre exatamente no dia do aniversário de morte do educador (2 de maio de 1997, aos 75 anos), às 19h, no UCS Teatro, no campus-sede, em Caxias do Sul. O evento prossegue nos dias 3 e 4 de maio e deve reunir mais de 500 pessoas entre professores, pesquisadores, educadores, estudantes de doutorado e de mestrado, bolsistas de iniciação científica e demais interessados na obra daquele que, embora contestações recentes, ainda é considerado o maior expoente da pedagogia brasileira, com conceitos reconhecidos e aplicados internacionalmente, especialmente na Europa, EUA e África.
“Na prática da liberdade se faz educação para a liberdade”
Marisa Formolo Dalla Vecchia, doutoranda em Educação e professora da UCS de 1970 a 1995
Pesquisas em debate – Realizado anualmente desde 1999 e de forma itinerante, por estudiosos do legado de Paulo Freire, com o propósito de aprofundar os conceitos do autor aplicando-os à atualidade, o evento visa à promoção de diálogos e reflexões a partir de um tema central – neste ano Democracia e Lutas Sociais: denúncias e anúncios. Também se constitui em espaço de divulgação e compartilhamento de estudos e pesquisas sobre educação, democracia, cidadania e lutas sociais tendo como referencial teórico a obra de Paulo Freire, o que, este ano, ocorre em 15 diferentes eixos temáticos. Trata-se, segundo a comissão organizadora do evento, de “debater a obra do autor como fonte inspiradora para desenvolver uma educação de qualidade e socialmente comprometida com a transformação social”.
A programação completa das rodas dialógicas, palestras e atividades culturais e as propostas dos eixos temáticos podem ser conferidas na página do evento.
Debate abrange rumos da educação e da sociedade

De acordo com a coordenadora geral Terciane Ângela Luchese, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCS, o XXI Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire tem como grande diferencial reunir docentes das mais importantes instituições de ensino superior do Sul do país e do Estado, como UCS, UFRGS, PUC-RS, UNISC, Unisinos, UFPel, FURG, Faccat e Feevale, todos com grupos de pesquisa vinculados à obra de Paulo Freire. Entre os debatedores constam especialistas de expressão internacional na obra freireana, como os professores Cesar Augusto Rossato, PhD em Educação da Universidade do Texas de El Paso (EUA); José Machado Pais, doutor em Sociologia e coordenador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa; e Sérgio Haddad, doutor em Educação pela USP, biógrafo de Paulo Freire e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCS.
“Freire é reconhecido como um dos mais importantes pensadores da educação no século XX. Não é à toa que sua obra seja estudada e referenciada em tantos países distintos, muitos deles com elevados índices de escolarização”, pontua Terciane, acrescentando que o trabalho do autor transcende a alfabetização e a educação escolar, mas é significativo também em relação às concepções do humano, de ensino-aprendizagem, de sociedade e da função do Estado perante a escolarização. “É certo que nem sempre precisamos concordar com Freire, mas para que a crítica seja sustentada, que o debate seja qualificado, é preciso conhecer o que ele escreveu e fazê-lo na profundidade necessária para se tratar dos rumos da educação na contemporaneidade”, sustenta.
“Pensar e questionar, em alguns contextos, pode ser delicado, desafiador. Mas não se pode silenciar, é preciso dialogar”
Terciane Ângela Luchese, professora do Programa
de Pós-Graduação em Educação da UCS e
coordenadora do Fórum
Necessidade dialógica – O debate, a propósito, era um dos princípios conceituais do educador, acrescenta a professora. “Como defensor do direito universal à educação, Freire defende o diálogo respeitoso entre o falar e o escutar. Preocupado com a formação integral do humano, pensa a educação como ato político de libertação do humano, como espaço para a construção da autonomia, de busca pela transformação social. Acredita no ser humano que, consciente de sua historicidade, de sua condição, aprende, ultrapassa as amarras da ignorância, se liberta, se emancipa e busca construir um amanhã melhor”, define Terciane, justificando a importância da práxis dialógica: “Pensar e questionar, em alguns contextos, pode ser desafiador. Mas não se pode silenciar, é preciso dialogar”.
‘Precisamos pensar uma educação que humanize’
A presença de Paulo Freire em Caxias do Sul foi resultado de uma ação conjunta do poder público, da UCS e de movimentos sociais que, desde 1980, promoviam eventos destinados à reflexão sobre a educação no município. Para o ano de 1984, o anseio de ampliar reflexões pedagógicas com efeito de transformação social, percebida por professores que trabalhavam a partir da realidade vivida pelos alunos, levou a Secretaria Municipal de Educação, a Universidade, escolas particulares, pastorais e movimentos sociais a criarem um ciclo de estudos sobre educação, de maio a novembro.
A primeira atividade, chancelada pela administração do prefeito Victório Trez (PMDB) como 2º Simpósio Municipal de Educação, foi a que trouxe Freire para três palestras, realizadas nos dias 30 (pela manhã no Cine Ópera e à tarde no antigo Ginásio Pedro Carneiro Pereira) e 31 de maio (no auditório do Bloco H da UCS).
O conteúdo das três conferências (incluindo respostas a perguntas do público) está reproduzido no livro ‘O Acendedor de Esperanças – Paulo Freire em Caxias do Sul em 1984’. Editada pela EDUCS, a obra traz ainda depoimentos de professores que trabalham a pedagogia freireana; as conclusões e propostas do simpósio, com uma análise de sua atualidade; e reflexões sobre a aplicação do pensamento de Freire em diferentes instituições de ensino superior, entre as quais a UCS.
“Precisamos voltar a pensar a educação como um processo amplo, para a cidade e região, não mais para cada instituição isoladamente”, defende a organizadora do livro, Marisa Formolo Dalla Vecchia, professora da UCS de 1970 a 1995. “Há 35 anos, a cidade já fez esse movimento. Hoje, é momento de colaborar com o debate colocando à disposição a história, conceitos, trabalhos e ideias para que o conjunto da sociedade se sinta estimulado a pensar uma educação que humanize e transforme”, justifica, frisando que Caxias do Sul integra, há 20 anos, a Rede Mundial de Cidades Educadoras – aquelas em que a visão de educação é a partir de diálogos entre diferentes instâncias do ensino e da comunidade.
Transformação pelo conhecimento crítico
Como professora à época, Marisa Formolo representava a Universidade nos eventos conjuntos relativos à educação, tendo acompanhado as três palestras de Paulo Freire, na qual os temas ‘Educação e Liberdade’, ‘Educação e Cultura Popular’ e ‘Curiosidade Epistemológica’ intercalaram-se formando um mosaico de alguns dos principais conceitos do educador.
No auditório do Bloco H da UCS, ele abordou a importância dos diferentes saberes na formação do educador e da ‘curiosidade epistemológica’ na produção do conhecimento. “Para mim, a formação do educador deveria se centrar em um permanente exercício de curiosidade do formando diante do mundo, diante dos objetos a serem conhecidos. Essa curiosidade estaria também ao lado do desenvolvimento do gosto de conhecer e de criar o novo. Agindo assim, me engajo na transformação do presente também através do processo de produção do conhecimento crítico”, detalhou Freire, na ocasião.

Assim, na abordagem freireana, é da realidade vivencial que se produz o conhecimento, sendo o conhecimento transformador aquele que nasce vinculado a uma prática. Com isso, o saber não formal é valorizado – em consonância com o respeito ao rigor científico, que é uma obrigação ética da educação, ressalva Marisa. “Por isso, educação popular significa que não existe conhecimento menor, mas saberes diferentes. O saber que vem do cotidiano, o saber que vem da ciência, o saber que vem da religião, o saber que vem da prática,… Todos têm valor e são incorporados à educação”, explica a professora.
O resultado é a conquista, pelo sujeito, da autonomia como cidadão de direito, mas com compromisso social – porque da valorização individual e do fazer coletivo surge o aprendizado da solidariedade. Por conseguinte, o respeito pelo outro não advém de uma obrigação moral, mas emerge do reconhecimento de uma responsabilidade humana, assumida naturalmente. “Na visão dialética defendida por Freire, sempre há o movimento, tudo se transforma, tudo se relaciona. Portanto, liberdade e educação, na prática, se dão nas relações, de confronto, de cooperação, de solidariedade, e em todas as outras que possam acontecer no processo”, explica Marisa.
AUTOR RECEBEU 48 TÍTULOS ‘HONORIS CAUSA’
Em 1963, Paulo Freire (1921-1997), então professor da Universidade do Recife, sua cidade-natal, aplicou em Angicos, interior do Rio Grande do Norte, um projeto de alfabetização de adultos pelo qual ensinou 400 pessoas a ler e escrever em 40 dias. A experiência foi o marco da implantação do método pedagógico que passou a levar o seu nome – caracterizado pelo estímulo ao pensamento crítico e à construção do conhecimento a partir da realidade do estudante, estabelecendo conceitos como a autonomia do sujeito e a emancipação do indivíduo.
O sucesso da iniciativa levou ao convite do presidente João Goulart para que Freire coordenasse o novo Programa Nacional de Alfabetização. Com a tomada do poder pelos militares, em 1964, o educador acabou preso e exilado. Começava ali um périplo de 16 anos que o levaria ser um dos pedagogos mais conhecidos do mundo.
Depois de um período na Bolívia, estabeleceu-se no Chile, onde atuou com educação de adultos no Instituto Chileno para a Reforma Agrária e foi assessor do Ministério da Educação local. Foi nesse período que escreveu sua principal obra, ‘Pedagogia do Oprimido’ (1968), até hoje único livro brasileiro entre os cem mais lidos em universidades de língua inglesa, já traduzido para 20 idiomas. Considerando-se apenas os autores da área da Educação, é o segundo mais consultado em bibliotecas de língua inglesa do mundo. Com isso, Freire tornou-se o terceiro pensador mais citado internacionalmente na área das Ciências Humanas.
No mesmo ano, foi convidado para ser professor visitante na Universidade Harvard (EUA). Em 1970, depois de um ano em Cambridge, Inglaterra, mudou-se para Genebra, na Suíça, para trabalhar como consultor do Departamento de Educação do Conselho Municipal das Igrejas. Na função percorreria, ao longo de dez anos, mais de 30 países, desenvolvendo projetos de alfabetização especialmente na África.
Freire retornou ao Brasil em 1980 e lecionou na PUC-SP e na Unicamp. De 1989 a 1991, foi secretário municipal de Educação de São Paulo (SP). Faleceu em 2 de maio de 1997, poucos dias após lançar seu último livro, ‘Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa’. Em 2012, foi declarado, por lei aprovada pelo Congresso nacional, Patrono da Educação Brasileira.
Reconhecimento internacional – Paulo Freire é o acadêmico brasileiro mais homenageado no Brasil e no exterior, tendo recebido, em vida e ‘in memoriam’, 48 títulos de ‘Doutor Honoris Causa’, sendo 29 de universidades da Europa e da América – dentre as quais Harvard, Cambridge e Oxford –, além de centenas de outras menções e outorgas internacionais. Em 1986, foi agraciado com o prêmio Educação pela Paz, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), e, em 1992, com o prêmio Educador do Continente, da Organização dos Estados Americanos (OEA).
A aplicação muito mais ampla de seu método no exterior do que no Brasil resultou na criação de institutos sobre sua obra na África do Sul, Alemanha, Áustria, Canadá, Estados Unidos Finlândia, França, Holanda, Itália, Inglaterra e Portugal. Estes e outros países seguem sua metodologia tanto no ensino fundamental como no médio e no superior. A Universidade de Oxford, por exemplo, a mais antiga da Inglaterra e uma das mais importantes do mundo, utiliza a metodologia freireana em seu programa de formação e preparação de professores, que tem duração de um ano.
OBRAS FUNDAMENTAIS
Paulo Freire foi autor ou co-autor de 37 livros na área de Pedagogia e Educação, dentre os quais:
• Educação como prática da liberdade (1967)
• Pedagogia do Oprimido (1968)
• Extensão ou Comunicação? (1969)
• Ação Cultural Para a Liberdade e Outros Escritos (1975)
• Educação e Mudança (1976)
• Cartas a Guiné-Bissau – Registro de uma experiência em processo (1977)
• Conscientização: Teoria e Prática da Libertação (1980)
• A Importância do Ato de Ler, em três artigos que se completam (1982)
• A Educação na Cidade (1991)
• Pedagogia da Esperança – Um Reencontro com a Pedagogia do Oprimido (1992)
• Professora Sim, Tia Não: cartas a quem ousa ensinar (1992)
• Cartas a Cristina (1994)
• À Sombra Desta Mangueira (1995)
• Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa (1997)
• Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos (2000) – obra póstuma.
Texto: Ariel Rossi Griffante
Fotos: Claudia Velho/UCS, arquivo pessoal Marisa Formolo, reprodução/EDUCS, Instituto Paulo Freire
Compartilhar